" Ser governado é... Ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado, por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude (...). Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, reenviado, corrigido. É, sob o pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; e depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, vilipendiado, vexado, acossado, maltratado, espancado, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, no máximo grau, jogado, ridicularizado, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis a justiça, eis a sua moral!

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Entrevista à Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ) Realizada por Jonathan Payn (Frente Anarquista Comunista Zabalaza – ZACF, África do Sul)


Agosto a outubro de 2010 A Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ) é uma organização específica anarquista da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Fundada no dia 30 de agosto de 2003, a FARJ identifica suas origens na atuação de militantes como Ideal Peres (1925-1995), seu pai Juan Perez Bouzas (ou João Peres) (1899-1958), José Oiticica (1882-1957) entre outros. Também possui referências nas organizações políticas como a Aliança Anarquista, fundada em 1918, e o Partido Comunista libertário, fundado em 1919 (não confundir com o Partido Comunista reformista e eleitoral fundado em 1922). Possui também referências históricas nos sindicatos influenciados pelos anarquistas no início do século XX, como a Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ), fundada em 1906, em todo o caminho de busca do “vetor social do anarquismo” das décadas de 40, 50, e nas atividades pós-ditadura militar. Jonathan (Jon): Para os leitores não familiarizados com o conceito de dualismo organizacional, vocês poderiam explicar por que a necessidade de construir uma organização política anarquista no Rio de Janeiro? E que tipo de processo que vocês tiveram que atravessar para chegar a essa conclusão e para formar a FARJ? Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ): O termo dualismo organizacional, como se utiliza em inglês (organizational dualism) serve para explicar a concepção de organização que defendemos, ou o que classicamente se chamou da discussão entre “partido e movimento de massas”. Em suma, nossa tradição especifista, tem suas raízes em Bakunin, Malatesta, Dielo Truda, Federação Anarquista Uruguaia (FAU) e outros militantes/organizações que defenderam essa diferenciação entre os níveis de organização. Ou seja, um nível amplo que chamamos de “nível social” que é composto pelos movimentos populares e o que chamamos de “nível político” que é composto dos militantes anarquistas que se agrupam sob bases políticas e ideológicas definidas. Esse modelo baseia-se em algumas posições: de que os movimentos populares não podem estar dentro de um campo ideológico definido – e, nesse aspecto, nos diferenciamos dos anarco-sindicalistas, por exemplo; que eles devem se organizar em torno das necessidades (terra, teto, emprego, etc.) agregando amplos setores do povo. Esse é o nível social ou dos movimentos de massa, conforme se chamou historicamente. O modelo também sustenta que para o trabalho nos movimentos, não basta estarmos dissolvidos, ainda que nos reconhecendo como anarquistas, dentro deles. É necessário que estejamos organizados, constituindo uma força social significativa que nos facilitará a promoção de nosso programa e também da defesa dos ataques de adversários que possuem outros programas. No entanto, deve-se ter em mente que não defendemos que se participe de um ou outro nível; os anarquistas também são trabalhadores e fazem parte desse amplo conjunto que chamamos classes exploradas e, portanto, eles se organizam, enquanto classe, nos movimentos sociais. Ainda assim, como esse nível de organização possui suas limitações, os anarquistas também se organizam no nível político, enquanto anarquistas, como forma de articular suas idéias e trabalhos. A chamada organização específica anarquista não é nenhuma novidade no movimento anarquista. Suas origens estão na própria militância de Bakunin no seio da Primeira Internacional com a formação da Aliança da Democracia Socialista em 1868. Malatesta, desenvolvendo a tese da minoria ativa de Bakunin, também pensou em algo semelhante. Da mesma forma os russos exilados do Dielo Truda e a FAU, entre tantos outros. Este agrupamento específico de revolucionários antiautoritários baseia-se nas posições sobre os horizontes (objetivos), estratégias e táticas comuns. Ou seja, a organização específica anarquista não é nenhuma “invenção” recente, mas possui sua trajetória na consolidação do próprio anarquismo enquanto uma ferramenta revolucionária, remontando à atuação de Bakunin. No desenrolar histórico do movimento anarquista, esta posição foi preterida em diversos países em detrimento de uma posição que dizia que o “sindicalismo” (que abarcava o conjunto dos movimentos sociais) se bastava. Para nós não. Acreditamos que o dever da organização específica anarquista, o que Malatesta chamou de “partido” anarquista, é articular as forças dos anarquistas em torno de uma proposta em comum e estimular que os movimentos sociais avancem cada vez mais para além das suas reivindicações, podendo forjar as bases de uma transformação revolucionária. É importante frisar que o dualismo organizacional não pressupõe uma relação de subordinação ou hierarquia entre as duas instâncias mencionadas. Na compreensão do anarquismo, a organização específica anarquista e os movimentos sociais são complementares. A relação da organização específica anarquista pressupõe uma relação ética e horizontal, que implica não haver relação de hierarquia nem de domínio sobre as instâncias que esta participa. No Rio de Janeiro, os chamados anarquistas organizacionistas tentaram fundar organizações específicas anarquistas duas vezes; mas a repressão adiou seu projeto. Esses companheiros intuíam que o refluxo do sindicalismo revolucionário poderia também condenar o anarquismo. E foi exatamente o que ocorreu. O sindicalismo não se “bastou” e com o esvaziamento do sindicalismo revolucionário, o anarquismo entrou em crise, já na década de 30. Na década de 40 e 50, os companheiros do Rio de Janeiro (e também de São Paulo) fundam suas organizações específicas, mas estão completamente isolados dos movimentos sociais e se organizam para reverter este quadro. Na década de 60, o golpe militar e as condições do movimento anarquista postergaram o projeto da organização específica anarquista no Rio de Janeiro. Com o movimento completamente destroçado pelos anos da ditadura, as décadas de 80 e 90 foram décadas de aglutinação de novos e velhos militantes, feita principalmente pelo trabalho incansável e paciente de Ideal Peres. Era hora não só de retomar velhos debates, mas também as experiências de luta importantes que os anarquistas empreenderam, mesmo que não necessariamente agrupados em torno de uma estratégia comum (ocupações, grupos de educação popular, presença em sindicatos, etc). No início de 2001, entendemos que era o momento de dar um salto qualitativo, saindo do modelo de “centros de cultura” em torno dos quais vínhamos nos organizando desde os anos 1980 e conformar uma organização política mais adequada para o trabalho com os movimentos. Isso vinha se tornando cada vez mais evidente; era o caminho que deveríamos seguir. Tínhamos algumas experiências com trabalho social e com a decisão de que o anarquismo deveria ter por função impulsionar as lutas populares tornou-se evidente que deveríamos buscar algo com mais organicidade, com mais coesão, enfim, um instrumento que permitisse aprofundar o trabalho da maneira que se mostrava necessária. Foi então que diversos militantes do movimento anarquista no Rio de Janeiro se reuniram com a intenção de discutir a proposta de fundar uma organização. Eles já tinham certa experiência na militância social, mas faltava discutir qual seria o nosso modelo de organização. Um dos grupos se retirou do processo e resolveu fazer suas próprias discussões separadamente. Posteriormente fundaram a Federação Anarquista Insurreição, que depois se chamou UNIPA (União Popular Anarquista). O grupo que permaneceu e continuou com as discussões constituiu a FARJ em 2003. É importante ressaltar que a FARJ foi conseqüência de um acúmulo de no mínimo uma década anterior, de presença de anarquistas em diversos movimentos sociais no estado do Rio de Janeiro. Jon: Como vocês vêem seu papel – o papel da organização específica anarquista em relação aos movimentos sociais? FARJ: O papel da organização específica anarquista é atuar como um catalisador das lutas sociais. Não acreditamos que as organizações políticas devam guiar as lutas ou dirigi-las, como reza a cartilha do marxismo-leninismo. A concepção de minoria ativa de Bakunin nos é muito grata neste sentido. A minoria ativa não impõe, não domina, não estabelece relações de hierarquia ou de mando dentro dos movimentos sociais. O papel da organização específica anarquista nos movimentos sociais também não é de ir a reboque de todas as posições dos movimentos que integra, mas de difundir e influenciar os movimentos com práticas libertárias (ação direta, autonomia, autogestão, etc), sem “doutrinarismos”. Isto implica uma enorme responsabilidade e pressupõe uma relação ética com estes movimentos. Isto também nos conduz ao inevitável papel de contribuirmos com a luta contra qualquer tipo de aparelhamento dos movimentos sociais, combatendo a burocracia, estimulando a organização interna do movimento, e trabalhar para que os movimentos caminhem sempre com suas próprias pernas. Jon: A FARJ faz uma distinção entre trabalho social e inserção social. Poderiam definir os dois? FARJ: Sim, fazemos esta distinção. Conforme colocamos em nosso programa: “o trabalho social é a atividade que a organização anarquista realiza em meio à luta de classes, fazendo o anarquismo interagir com as classes exploradas”; a inserção social é “o processo de influência dos movimentos sociais a partir da prática anarquista. Assim, a organização anarquista possui trabalho social quando cria ou desenvolve trabalho com movimentos sociais e possui inserção social quando consegue influenciar os movimentos com as práticas anarquistas.”. Vejamos como podemos explicar mais sobre isso em termos práticos. Para nós, o trabalho mais importante da organização anarquista é funcionar como motor/fermento das lutas dos movimentos sociais, sindicatos etc. e neste sentido, temos sempre como objetivo criar movimentos ou participar de movimentos que já existem. Pois bem, dizemos que temos trabalho social quando participamos dos movimentos ou criamos movimentos e que eles não funcionam com a estratégia que defendemos. Quando entramos em um movimento como os sem-teto, por exemplo, e desenvolvemos trabalho sem conseguir levar a cabo um projeto próprio, ou seja, uma aplicação prática de nosso programa, estamos realizando trabalho social. O trabalho social é, portanto, estar participando do movimento, mas sem conseguir implementar nosso programa, esse projeto próprio de que falamos. Geralmente, os primeiros passos de uma organização anarquista são sempre de trabalho social, mas é imprescindível buscar, em um segundo momento, a inserção social. Conforme a definição colocada acima, a inserção social ocorre quando, a partir do trabalho social, a organização anarquista consegue fazer com sua estratégia funcione em termos práticos nos movimentos populares. Na realidade, para nós não basta simplesmente estar nos movimentos e viver a reboque deles; é preciso estar lá com um programa e lutando para que ele seja implementado na prática o máximo possível. Em nosso programa, nós propomos uma estratégia determinada para os movimentos: em resumo, movimentos amplos sem critérios ideológicos ou religiosos como base para associação; corte de classe nessa associação, ou seja, movimentos forjados sobre setores das classes exploradas; combatividade visando as conquistas por meio das lutas e não pelo colaboracionismo entre classes ou acordos de gabinete; autonomia em relação a indivíduos, organizações e instituições tais como partidos autoritários, Estado etc; ação direta como forma de garantir as conquistas da classe às lutas da própria classe, sem participação nas instâncias da democracia burguesa; tomada de decisão por meio da democracia direta, ou seja, movimentos que se organizem horizontalmente, com tomadas de decisão por todos os envolvidos no processo de luta sem lideranças descoladas da base e afirmando-se sobre a autogestão e o federalismo; finalmente, uma perspectiva de longo prazo que possa impulsionar as conquistas do dia-a-dia e também impulsionar às lutas a um objetivo revolucionário e socialista. Enfim, quanto mais conseguimos promover essa estratégia dentro dos movimentos, e quanto mais eles funcionam dessa maneira, mais temos inserção social. Portanto, a distinção é fácil: trabalho social é participar e inserção social é conseguir implementar o programa. O trabalho deve sempre ser o início e a inserção o objetivo buscado nos movimentos. Enfatizamos os movimentos sociais, pois o trabalho social não é feito a esmo e muito menos podemos considerar qualquer ato de rebeldia, ainda que admirável quando dirigido aos opressores, um trabalho social. Primeiro há a questão do terreno, que é o terreno da luta de classes e das possibilidades colocadas pela organização popular. Se entendemos como protagonistas da revolução o conjunto das classes exploradas, nada mais óbvio do que trabalhar com movimentos constituídos por aqueles/as oprimidos/as pelo capitalismo. Estes movimentos ou já existem, ou precisam ser criados – esta última tarefa pode partir da organização específica anarquista ou não. O trabalho social necessita de certa sistematicidade. Ou seja, precisa ser regular e se desenvolver sobre bases mais ou menos sólidas e possuir, ou pretender, o chamado recorte de classe. Precisa refletir sobre seus objetivos, sob risco de cair no ativismo pelo ativismo ou de desperdiçar energias necessárias para o avanço das lutas. Devemos ressaltar que o trabalho social requer muita perseverança e paciência. É necessário, portanto, certa postura. Algo que FAU chama de estilo militante, cujo termo nos é completamente adequado e é algo que começamos a refletir recentemente em maior grau. Não há militância que dê resultado, quando há um descompasso entre as posturas dos/as militantes. Nem de longe, queremos que todos ajam e se comportem de forma homogênea ou se anulem em detrimento do coletivo. Há várias personalidades e temperamentos dentro da organização. O que pensamos, é que deve haver certos parâmetros do trabalho social que devem ser estimulados dentro da organização específica anarquista. Nossa carta de princípios já define a coluna vertebral da nossa organização, mas o cotidiano do trabalho social pressupõe problemas que não serão resolvidos apenas com abstrações. Para isto é imprescindível que a/o militante não seja um “corpo estranho” exótico/exógeno nos movimentos que pretende fazer (ou faz) parte. É preciso saber escutar, saber ouvir. É necessário ser paciente e acima de tudo muita autenticidade e sinceridade no trabalho realizado. Dar corpo aos valores que defendemos não a partir da verborragia ou da pura doutrinação, mas a partir da caminhada ombro a ombro, da fraternidade e da solidariedade da luta, que se desdobra no cotidiano do trabalho social. Não há como desenvolver trabalho social, se somente consigo interagir, dialogar e me socializar com meus iguais “revolucionários”. Obviamente nenhum/a militante reúne todas as qualidades que antecipamos, mas é a partir das ponderações coletivas que afinamos o tom. Quanto mais existe esse estilo militante, maior a possibilidade de haver inserção social. Não se trata de ideologizar os movimentos, nem transformá-los em movimentos sociais anarquistas, mas sim de fazer com que estes consigam ir o mais longe possível rumo aos horizontes revolucionários. Jon: Desde que visitei a FARJ pela primeira vez, em 2005, vocês abriram uma nova frente na organização, que chamam de Anarquismo e Natureza. Brevemente, vocês poderiam descrever as atividades, o foco e a estrutura de cada uma das três frentes, além dos movimentos sociais com os quais elas trabalham? FARJ: Atuamos nos movimentos sociais a partir do trabalho de nossas frentes. A Frente de Movimentos Sociais Urbanos atua principalmente no Movimento dos Trabalhadores Desempregados – Pela Base, que é um movimento composto por desempregados, subempregados e todos aqueles que sofrem de alguma forma as conseqüências do modo de organização capitalista. O MTD-RJ Pela Base organiza-se em torno das necessidades das comunidades e dos bairros em que está inserido. Atualmente contamos com alguns núcleos, em sua maioria, inseridos em comunidades de periferia e favelas do Rio de Janeiro. No núcleo do Complexo dos Macacos, trabalhamos essencialmente com a educação popular; atuando na organização de um pré-vestibular, que é um curso feito para os estudantes que não podem pagar os altos custos de cursos privados poderem se preparar para o exame de acesso às universidades do estado. Este núcleo, que fica dentro do Centro de Cultura Social, também possui um trabalho de reutilização de roupas e retalhos, que é organizado por uma companheira que morava em uma ocupação que era núcleo do MTD-RJ e foi despejada há cerca de um ano e meio. O núcleo do complexo da Penha trabalha prioritariamente com a questão cultural, especificamente o hip-hop. Há outro pré-vestibular, em que membros do MTD-RJ Pela Base estão inseridos, trabalhando como professores, localizado no Complexo da Maré. E fora da cidade do Rio de Janeiro, temos um núcleo na cidade de Petrópolis, região serrana do estado do Rio de Janeiro; este núcleo está atuando com a questão do transporte e com o trabalho informal. Há muita coisa a ser feita, os núcleos estão em consolidação. O mais importante é que o MTD-RJ Pela Base conseguiu agregar diversos companheiros e companheiras, cujo horizonte primordial é o anticapitalismo e a organização dos movimentos sempre pela base, buscando a autonomia completa de governos, partidos e empresas. Em menor grau, a Frente de Movimentos Sociais Urbanos atua no Centro Acadêmico de História da UFRJ, por meio de um companheiro estudante. Criar a relação entre o movimento estudantil e os movimentos populares parece imprescindível a qualquer projeto de transformação social, apesar de sabermos, que não é um trabalho fácil. Nossa Frente Comunitária é responsável pela organização do Centro de Cultura Social, que se localiza no bairro de Vila Isabel e atende prioritariamente a comunidade do Morro dos Macacos. Dentro do CCS, há vários grupos e projetos. Oficinas de literatura e cinema com as crianças e adolescentes do Morro dos Macacos, um pré-vestibular como mencionado acima, e que é um trabalho conjunto de três grupos (MTD-RJ Pela Base, CCS e Luz do Sol), oficina de educação ambiental e reutilização de materiais, venda de roupas usadas a preços populares para a comunidade, cursos de informática, e por fim, a Biblioteca Social Fábio Luz. Atualmente estamos trabalhando como professores e apoios no pré-vestibular do espaço, que atende principalmente a comunidade do entorno, na organização da Biblioteca Social Fábio Luz (que possui um acervo que vai desde anarquismo até literatura, filosofia e livros escolares) e na oficina de literatura e cinema com os jovens da comunidade. No CCS também funciona o Núcleo de Pesquisas Marques da Costa, responsável por produzir artigos e pesquisas sobre a história do movimento operário e do movimento anarquista no Rio de Janeiro, onde editamos também um informativo chamado “Emecê”, reunindo pesquisadores afins. A função primordial do CCS é tornar-se não só uma referência para os movimentos sociais do Rio de Janeiro, mas abrir as portas para iniciativas autônomas e que contribuam para a formação política e social da comunidade em seu entorno. O CCS vem cumprindo modestamente estes objetivos. Nossa última e mais recente frente, chamada de agroecológica, ou Anarquismo e Natureza foi criada a partir de um trabalho específico desenvolvido principalmente em Seropédica (cidade rural do Rio de Janeiro) e na Baixada Fluminense, e da atuação desses militantes no Núcleo de Saúde e Alimentação Germinal, que por alguns anos organizou atividades no Centro de Cultura Social (CCS-RJ), apoiando também, atividades comunitárias ligadas ao movimento sem teto e de agricultores urbanos. O que começou com a atuação dos nossos militantes em grupos agroecológicos da região (Grupo de Agricultura Ecológica – GAE e Associação dos Produtores Autônomos da Cidade e do Campo – APAC), resultou na atuação da frente em assentamentos do MST e com pequenos agricultores da região. A frente também integra, por meio dos movimentos em que está inserida, a Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), que é uma rede de grupos e movimentos sociais rurais do estado do Rio de Janeiro que luta principalmente contra a expansão do agronegócio, dos transgênicos e no fortalecimento das iniciativas agroecológicas. Entendemos que agroecologia só pode tornar-se uma alternativa de ruptura com o capitalismo, quando conectada aos movimentos que lutam pela terra e pelo controle da produção no campo a partir de uma perspectiva de ação direta. Jon: Qual são as funções das frentes em relação à organização específica e os movimentos populares? FARJ: Em relação à organização específica, as frentes não são grupos dentro da organização, mas partes integrantes da FARJ. A divisão em frentes se dá mais por uma questão de organizar melhor o trabalho militante. A autonomia das frentes é operativa, ou seja, está subordinada à linha estratégica definida coletivamente em nosso conselho federal e conectada aos princípios e ao programa da organização. Isto é fundamental para que tenhamos os mesmos horizontes de luta. Sem isto, o trabalho seria impossível de ser feito e rapidamente descambaria para o “ativismo pelo ativismo”, o que seria um desperdício de energia terrível. Acontece, por exemplo, apesar de não muito rotineiro, de militantes migrarem de uma frente para outra; seja por demandas coletivas da organização ou por incapacidade temporária (ou facilidade) destes em atuarem em determinado espaço. As frentes surgiram das necessidades concretas dos movimentos que atuamos e das condições da organização para operar e coordenar a atuação anarquista nestes espaços. No que diz respeito aos movimentos populares, temos a intenção basicamente de fortalecê-los; difundindo pelo exemplo, pela prática política e pela ética, princípios de autonomia, ação direta e horizontalidade. Como já falamos, não acreditamos em movimentos sociais “anarquistas”, isto seria retirar a grande maioria dos militantes dos movimentos e, por isso, condenar o anarquismo aos guetos ou aos círculos limitados. Contudo, difundir os valores libertários é garantir que os movimentos não sejam nem aparelhados por partidos e governos, nem que tomem rumos reformistas. A atuação das frentes se dá neste sentido. Em trabalhar para que a autonomia dos movimentos e a combatividade sejam garantidas; e atuar para que os movimentos se organizem cada vez mais e alcancem horizontes revolucionários. Obviamente, a difusão do anarquismo nos movimentos, acontece naturalmente no desenrolar das nossas práticas enquanto militantes, mesmo que não seja um fim, se dá neste sentido, sempre respeitando as escolhas e posições pessoais dos militantes que o integram. Jon: Há trabalhos fora destas três frentes? Em caso afirmativo, qual tipo de trabalho? FARJ: Há alguns trabalhos transversais que estamos inseridos, como a Universidade Popular, onde vários companheiros das frentes estão envolvidos. A Universidade Popular é um projeto de educação popular que atua basicamente com cursos e oficinas de formação política e social em comunidades, núcleos de desempregados, favelas, ocupações, assentamentos, etc. Há também os que não necessariamente foram formalizados em uma frente específica. Alguns companheiros atuam em seus respectivos sindicatos ou em suas entidades estudantis, mas priorizam sempre o trabalho que lhes foi confiado em suas respectivas frentes. Não temos formalizado uma frente sindical, pelas condições descritas anteriormente, mas é uma possibilidade em aberto. Evitar sobrecarga de trabalho é fundamental para não esgotar as/os militantes. Obviamente, que toda militância possui certa dose de sacrifício; mas desgastar demasiadamente nossos/as militantes com trabalhos que não estão agrupados em torno de um objetivo comum é completa perda de tempo. Por isto sempre ponderamos coletivamente sobre a abertura de novos trabalhos. Dispersos somos cada vez menos efetivos; por isto, a grande importância das atividades serem operadas no âmbito das frentes. Há trabalhos fora das frentes que se dão no âmbito das secretarias da organização. Não consideramos este trabalho um trabalho propriamente de militância social; mas optamos por definir que cada militante deve realizar um trabalho externo (nas frentes, ou seja, no trabalho destas em seus respectivos movimentos sociais) e um interno (nas secretarias da organização). Isto evita que dentro do grupo, existam pessoas que só façam trabalhos internos “ideológicos”, trabalhos em grande parte confortáveis e livres das contradições e desgastes dos movimentos sociais. Evita também que o/a militante apenas atue socialmente e não se preocupe com as tarefas internas da organização que são muito importantes. É imprescindível para nós, que todo/a militante tenha contato direto e trabalho permanente nos movimentos sociais em que está inserido e que realize algum trabalho interno para a organização. Jon: Em agosto de 2008 vocês adotam o documento Anarquismo Social e Organização como seu programa. Vocês poderiam descrever como este documento foi concebido e o processo que culminou na sua adoção? FARJ: Já há algum tempo tentávamos sistematizar alguns debates surgidos no interior da organização. Estas reflexões foram feitas a partir da nossa experiência de militância social operada pelas frentes. O programa se constituiu enquanto uma formalização de algumas idéias, que dizem respeito não só a nossa concepção de anarquismo, mas também de resgate, tanto histórico como ideológico, de concepções de organização que compõe a trajetória do movimento anarquista. Precisávamos também definir melhor nossos horizontes e formalizar alguns métodos, resolvendo diferenças de concepção e sistematizando reflexões coletivas. O processo de formalização do programa foi feito não só a partir do acúmulo de leitura coletiva que tínhamos; ou seja, de acúmulo teórico, mas também surgiu a partir das reflexões das frentes em suas dificuldades, sucessos e insucessos na militância social. O programa surgiu de nossa prática política, modesta, diga-se de passagem, mas intensamente rica em contribuições. Iniciamos então, uma discussão interna, onde distribuímos responsáveis por contribuir com o texto “final”. A leitura de todos os materiais, a contribuição individual e coletiva fora de certa forma longa e cansativa, mas importante para termos algum horizonte estratégico. O trabalho foi grande, já que paralelamente à isto, nossa militância não podia ser interrompida. Depois de muito esforço e intensa discussão coletiva, conseguimos sistematizar este material. O fundamental deste processo foi que conseguimos agregar os/as militantes da organização, o que, resolveu as assimetrias ideológicas e contribuiu enormemente para nossa autoformação. Obviamente, encaramos que o programa não é uma cláusula pétrea, nem uma bíblia sagrada. Avaliamos que alguns ajustes, frutos de incorreções, podem (e devem) ser feitos posteriormente; é normal que isto aconteça. Contudo o mais importante foi dar uma contribuição não apenas a nossa prática, mas ao conjunto do movimento anarquista. Sem dúvida nenhuma, podemos dizer que a repercussão do programa foi muito maior do que esperávamos! O que nos deu muita satisfação, mas por outro lado, nos impôs mais responsabilidades e também nos tornou mais cônscios de nossas tarefas. Jon: A FARJ recentemente entrou no Fórum do Anarquismo Organizado (FAO) no Brasil. O que é o FAO e seus objetivos? FARJ: O Fórum do Anarquismo Organizado é um fórum que reúne uma série de organizações específicas e grupos anarquistas em torno de uma perspectiva comum de atuação anarquista organizada nos movimentos sociais e populares. É um espaço de debate e articulação entre organizações, grupos e indivíduos anarquistas que trabalham ou têm a intenção de trabalhar utilizando como base os princípios e a estratégia do anarquismo especifista. O objetivo maior do FAO é criar as condições para a construção de uma organização anarquista no Brasil. Tarefa que sabemos não ser de curto prazo, mas que precisa ser iniciada desde já. A necessidade de um projeto minimamente articulado dos anarquistas em nível nacional é fundamental para que consigamos retomar a força da proposta libertária. Jon: Quais são as implicações práticas da entrada da FARJ no FAO? E por que demorou tanto tempo para a FARJ participar? FARJ: Por enquanto compartilhar e articular minimamente propostas gerais. Discutir e debater não só nossas práticas políticas, mas questões teóricas que nos parecem importantes para empreender ações comuns, calcadas nas diferentes realidades locais em que os grupos atuam. Quando o processo do FAO iniciou, optamos por construir nossa organização internamente e consolidar nossos trabalhos, o que avaliamos hoje, como uma opção muito acertada, já que fomos definindo melhor questões estratégicas e desenvolvendo nossa prática militante. Isso ocorreu, em grande medida, pois havia divergências em torno de questões práticas, que diziam respeito a atuação de outra organização anarquista no Rio de Janeiro, que além de infelizmente impedir a nossa entrada no Fórum, logo depois, rompeu com o FAO e acusou, após sua saída, todos os outros grupos e organizações anarquistas de “revisionistas” e “ecletistas” (termo curiosamente adotado pelo leninismo em muitos de seus textos). Aproximaram-se assim, de uma posição teórica reivindicada como “bakuninista”, acusando Malatesta e Kropotkin de serem pensadores “revisionistas”. Paralelamente, voltamos a restabelecer contato com vários grupos e organizações anarquistas. Isto aconteceu naturalmente a partir do encontro de nossos militantes nos fóruns das entidades de classe e movimentos sociais que estes participam. As perspectivas de entrada no FAO tornaram-se concretas. É importante ressaltar que houve muita maturidade política de todos os envolvidos para superar antigas questões. Isto foi fundamental para resolvermos problemas específicos e avançarmos em torno de uma proposta comum. Não há como construir um fórum ou uma organização de âmbito nacional, sem que consigamos discutir fraternalmente todos os problemas que se colocam diante desta imensa tarefa. Achamos que o FAO foi muito feliz pelo caminho escolhido, conseguindo agregar os grupos e organizações que agora o compõem. Há ainda, a possibilidade de outras organizações, muito brevemente, integrarem o FAO. Só de sabermos que há outros companheiros e companheiras atuando em suas respectivas localidades com uma perspectiva de anarquismo organizado, nos dá grandes esperanças nos caminhos da transformação social. Jon: A África do Sul já hospedou a Copa do Mundo de Futebol, e o Rio de Janeiro será uma “FIFA Host City” para a Copa de 2014. Que impactos ou efeitos vocês acham que isto terá na cidade, política e economicamente, assim como nos movimentos sociais populares como os quais vocês trabalham? Algumas coisas já estão acontecendo? FARJ: Em 2007, na realização dos jogos Pan-Americanos (PAN), os movimentos sociais já denunciavam o processo de “limpeza urbana” efetuado para receber as delegações estrangeiras e os turistas. O PAN foi um pequeno treino das elites no estado do Rio de Janeiro e do Brasil para a realização de um plano muito mais ambicioso, que é o de transformar o Rio de Janeiro numa cidade essencialmente turística e aberta ao grande capital internacional. O sonho das elites criou o pesadelo dos explorados quando a coalização das três esferas de governo, Lula, Sérgio Cabral (governador do Rio de Janeiro) e Eduardo Paes (prefeito do Rio de Janeiro) associados a grandes empresários nacionais e internacionais, iniciaram a “adaptação” da cidade à Copa do Mundo e às Olimpíadas. O plano que teve início no Pan-Americano se desenvolveu com mais força nessas últimas gestões, com pouco acúmulo de força dos movimentos sociais para conseguir barrar estes projetos. Como nós (e outros movimentos sociais e grupos políticos autônomos) alertamos, muitos movimentos sociais que optaram pelo caminho de ilusões dos mecanismos legais, se viram confrontados com um estado cada vez mais “endurecido”, fruto do pacto político das elites, que removeu estrategicamente setores um pouco mais progressistas de suas fileiras e canais institucionais para efetivarem seu projeto com a casta mais reacionária que puderam contar. As implicações políticas e sociais são terríveis. Ao adaptar a cidade às exigências da FIFA e de outros organismos do capitalismo internacional, se desenvolve uma política de “tolerância zero” muito semelhante ao modelo estadunidense de repressão. Temos como exemplos desta política de extermínio, o aumento do salário e das gratificações da polícia militar do estado do Rio de Janeiro (enquanto os professores das escolas estaduais no Rio de Janeiro possuem um dos menores pisos salariais do país), a construção de unidades policiais nas favelas e nas periferias (UPP’s – Unidades de Polícia “Pacificadora”) para controle da pobreza e extermínio dos descontentes e a política de despejos e remoções de ocupações e comunidades pobres. A polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata no Brasil! Para termos idéia, um arranjo institucional chamado “Choque de Ordem”, uma espécie de AI-5 [Dispositivo jurídico do estado de exceção da ditadura civil-militar de 1964 que cassava mandatos, suspendia habeas-corpus e outras garantias constitucionais “legais”.] municipalizado, foi posto em prática pela prefeitura. Os resultados foram despejos, remoções, repressão e ataque aos/às trabalhadores/as. O que assistimos é um processo crescente de militarização da cidade à serviço do projeto nacional das elites que provavelmente será exportado para outros estados brasileiros quando necessário. Pelo histórico da cidade, podemos dizer que o Rio de Janeiro é uma espécie de laboratório social para as elites econômicas e políticas que dominam o Brasil. A promessa de vários candidatos à presidência, de criação de um ministério da segurança, já revela a dimensão no âmbito do governo federal de como será tratada a questão social daqui para frente. Na questão econômica temos grandes ganhos para os empresários e capitalistas, enquanto que para os trabalhadores informais (camelôs) sobra a repressão e a precariedade. O aumento do contingente da Guarda Municipal (guarda militar da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro) prova que o recrudescimento social é terrível. A especulação imobiliária avança desenfreadamente. As conseqüências são a gentrificação e a periferização dos mais pobres; a exclusão daqueles que não podem pagar altos aluguéis ou comprar casas nas áreas valorizadas. Podemos dizer abertamente que a valorização dos terrenos na cidade do Rio de Janeiro se dá a partir de um projeto de “cidade ideal” das elites: neste projeto se combate a pobreza combatendo os pobres. Para os movimentos sociais a conjuntura é muito difícil. A repressão, a criminalização e a perseguição política durante a Copa, e por que não dizer, até o extermínio físico dos descontentes é uma possibilidade que deve ser encarada com seriedade e preocupação. Na Copa do Mundo e nas Olimpíadas é provável que isto cresça, com respaldo da mídia e de grande parte da classe média. A conjuntura hoje em nosso estado, guardadas às devidas proporções históricas, é muito semelhante ao período da ditadura militar. Há um fascismo institucional em curso. Jon: Pelo menos na minha organização, e possivelmente em outros grupos de tradição plataformista ou especifista, tentamos duramente buscar um equilíbrio entre a necessidade de aproximar e admitir novos militantes, aumentando sua capacidade e suas atividades, e o nível de unidade teórica e tática. Vocês poderiam falar um pouco sobre o processo o que a FARJ usa para aproximar novos militantes e quais são os requisitos para fazer parte da organização, tanto como “militante”, quanto como “apoio”? FARJ: Bom, é importante entender a chegada de novos companheiros e companheiras e a necessidade de integrá-los na dinâmica da organização como um “bom problema” de uma organização política anarquista, uma federação pública, mas que não é totalmente “aberta”, pois possui critérios definidos, mas não completamente rígidos, para os que desejarem integrá-la. Dois critérios são importantes, desenvolver trabalho social, e ter concordância com a proposta da organização. A aproximação acontece de diferentes formas. Os/as companheiros/as podem nos conhecer e trabalhar conosco nos movimentos sociais, e a partir deste trabalho, podem acabar demonstrando interesse em integrar nossa organização. Achamos que esta é uma das melhores formas de se aproximar dos/as novos/as integrantes, pois se trata da possibilidade de atuar junto aos trabalhos sociais desenvolvidos nos movimentos, dando-lhes a possibilidade de com a prática, conhecer nossos trabalhos políticos. Mas há casos distintos, como outros companheiros e companheiras que nos conhecem a partir de nossos materiais, como o jornal Libera, ou pelos espaços anarquistas onde atuamos diretamente, como o CELIP, e a partir destes se interessam pela organização a partir de um vínculo estritamente ideológico. É importante que o companheiro ou companheira que tenha interesse em integrar a organização, esteja desenvolvendo trabalho junto aos movimentos sociais: trabalho estudantil, comunitário, sindical, com sem tetos e sem terras, com desempregados/as, com agricultores/as, etc. Os locais onde estamos atuando são considerados por nós como um dos melhores espaços de aproximação. Há também o caso de companheiros/as que mesmo a distância, seja fora do estado, ou até de outras regiões do país, querem apoiar e participar da FARJ, pois se reconhecem nos nossos documentos (especialmente Anarquismo Social e Organização) e se propõem a integrar o círculo de militantes de apoio da FARJ. Para integrar o nível de apoio o/a companheiro/a geralmente manifesta interesse em apoiar a organização. Essa conversa é levada para discussão coletiva, onde se fala, sobretudo, da militância do/a pretendente. Sempre que um(a) novo/a companheiro/a pede ingresso como apoio um dos/as nossos/as militantes fica com a responsabilidade de repassar documentos e textos que buscam situar e tirar as dúvidas do novo militante, que dizem respeito tanto a nossa formulação como sobre nossa prática política. É importante não perdermos nosso acúmulo e socializarmos nossas reflexões. O ingresso no círculo de militantes inclui maiores responsabilidades e comprometimento, e é uma conseqüência do primeiro trabalho. Isto só se dá quando o/a novo/a companheiro/a já vem trabalhando junto a uma das frentes como apoio, e já está ciente das discussões próprias do movimento social que participa e dos materiais da organização. Isto é importante, pois evita a militância “alienada”, que costumamos observar nas organizações hierárquicas dos partidos políticos eleitorais ou “revolucionários”. É importante que todo/a militante anarquista possa aplicar a linha política da organização, e esteja preparado minimamente para o trabalho político que a organização se propõe a realizar. Este/a companheiro/a é integrado/a também a FARJ à medida que declara seu interesse. Por isto, é preciso estabelecer um grau de confiança, por que o trabalho anarquista não pode ser construído apenas com uma afinidade teórica abstrata. Este laço de solidariedade, respeito e confiança no/a companheiro/a se dá na luta, se não, a unidade é puramente artificial, ou pior, baseada apenas em laços afetivos, que sabemos que existem em toda a organização, mas que não podem ser os critérios objetivos de uma prática política. A dinâmica é simples. Após um tempo integrando o círculo de apoio, estes/as companheiros/as podem integrar o círculo de militantes da organização se assim desejarem, assumindo com isto suas novas responsabilidades. É importante que a iniciativa de integrar o círculo de militantes parta do/a próprio/a interessado/a e seja referendada pelo coletivo. É importante frisar: os novos compas (que moram no Rio de Janeiro) serão integrados na medida que participam dos trabalhos sociais e têm acordos com as propostas da FARJ, mas nunca somente a partir de acordos ideológicos que não resultem em concordância com a prática política da federação. Já os/as que estão a distância podem apoiar a partir da concordância ideológica e da prática social que desenvolvem em sua cidades de moradia. Sabemos que sempre vai haver assimetria de conhecimentos teóricos e práticos e diferentes aptidões entre velhos e novos companheiros e companheiras. Mas a organização, que é sempre uma construção coletiva e não um agregado de indivíduos, deve criar formas para tentar nivelar os conhecimentos mínimos necessários aos trabalhos políticos e ou sociais. Os membros da organização devem também se preparar individualmente para trabalhos teóricos e práticos, em ambos os níveis, tanto no social, quanto no político. Coletivamente resolvemos as assimetrias realizando seminários internos e construindo textos coletivos a partir de leituras em comum ou discussão em grupo. Jon: Vocês acham que esses processos de aproximação e de construção de unidade tática e teórica, além dos critérios de entrada na organização, podem variar conforme as condições políticas e sociais de um determinado local e de sua “tradição” libertária? Como? FARJ: Sim. Achamos que a realidade não responde apenas às nossas vontades, e a organização deve estar pronta para atuar em diferentes conjunturas e contextos, sem se burocratizar ou cristalizar modelos que não atendam as diversas realidades enfrentadas pela militância anarquista. Seja no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo. O Brasil recentemente saiu de um período ditatorial e ingressou num suposto regime democrático. E a história dos países latino-americanos é repleta de períodos ditatoriais. Aqui mesmo tivemos dois momentos assim, de 1930 até 1945 e de 1964 a 1985, e temos que trabalhar conscientes que a história pode se “repetir”. Também estamos conscientes que a realidade da militância no nosso país, até mesmo dentro de um estado pequeno em se tratando de Brasil, como o Rio de Janeiro, apresenta diferenças e especificidades que não podem ser negligenciadas. Fazer política no interior do estado do RJ, ou mesmo, na Baixada Fluminense, região metropolitana da cidade, é trabalhar em um ambiente mais hostil do que aquele encontrado na capital do estado. Mas, a pergunta que você fez é como adaptar os critérios de aproximação e entrada à necessidade de mantermos uma unidade teórica e estratégica? Seja em momentos de maior ou menor repressão e à luz de diferentes tradições libertárias. Achamos que isso pode ser pensado a luz de experiências práticas, tal como a da FAU, que já atravessou momentos de ditadura e momentos democráticos, e precisou se adaptar para não deixar de construir sua militância. E nossa organização é muito jovem, com sete anos apenas; e de fato por iniciarmos nossa militância em um período de “redemocratização” estamos atuando com essa realidade, que nos permite editar jornais anarquistas, fazer atividades em universidade e sindicatos, etc, coisas que são inviáveis em um regime ditatorial. É certo que se a repressão aumentar teremos que realizar todo este trabalho de aproximação e de ingresso na organização em outras bases, menos públicas e menos abertas, de forma a garantir os trabalhos da organização e a vida dos militantes. Falamos isso para sustentar uma posição de que não adianta pegar um livro de receitas e tentar aplicá-lo completamente em nossa realidade. Uma das características básicas de uma organização quer permanecer no tempo poder influir sobre a realidade, é que ela deve saber observar a conjuntura e a partir daí adaptar sua atuação. Por exemplo, na FARJ, demoramos algum tempo até atingirmos o nível de unidade que temos hoje e nem por isso achamos que a unidade menor, que existia no início, era motivo para um “racha”. Uma organização que está se conformando, principalmente em localidades que não tenham grande tradição de militância, precisa ter calma. Nós defendemos completamente a unidade teórica e tática, mas se estivermos criando uma organização, por exemplo, não podemos “apertar” muito a exigência de unidade sem discussões amplas, pois isso limitaria muito o número de militantes da organização (como em muitos grupos trotskistas). Assim, é necessário ter paciência; a unidade se atinge por meio de processos de formação, discussão e fundamentalmente de prática política da organização nas lutas. Por isso, tem que se dar “tempo ao tempo”, ou seja, forjar as bases mínimas de união para reunir um grupo de companheiros/as para iniciar as discussões e os trabalhos e neste contexto, ir “apertando” a unidade, a organicidade etc. A militância também é uma cultura e as pessoas não se modificam tão rápido. Elas vão ter concordância com os documentos ou com os trabalhos da organização, aos poucos vão vendo a necessidade de disciplina, de regularidade nos trabalhos, do aprofundamento teórico etc. Não adianta chegar um militante novo e você “jogar” um monte exigências em cima dele pois muito provavelmente ele sairá da organização. Deve ser um exercício permanente saber o quanto “apertar a porca”, pois, se é verdade que quando está pouco apertada pode haver problemas, se apertar muito ela espana. Ou seja, a organização deve ter em mente o aumento permanente de unidade, mas sempre “apertando a porca” na medida correta, sem exagerar e nem deixar de apertar. Às vezes pode ser melhor começar com linhas mais básicas e ir desenvolvendo a discussão ao caminhar do que tentar fechar muito todos os pontos no início. Finalmente, devemos dizer que a organicidade e a unidade da organização anarquista devem acompanhar os trabalhos dos movimentos populares. Não adianta querer ter uma organização anarquista com um nível máximo de organicidade e unidade se há poucas lutas, se elas estão muito desorganizadas etc. Como um complemento às lutas dos movimentos, a organização anarquista deve acompanhar seu nível de desenvolvimento, sem nunca esquecer a conjuntura; com um recrudescimento das lutas sociais, é natural que a organização anarquista tenha de se adaptar a isso. Jon: Querem falar mais alguma coisa? FARJ: Apenas desejar força aos companheiros/as anarquistas, em especial, os/as da Zabalaza. Esperamos que os movimentos sociais autônomos avancem e que os grupos e organizações anarquistas possam humildemente contribuir com um horizonte de luta que se pretenda revolucionário e que esta seja tarefa do conjunto dos oprimidos e oprimidas. Ainda cabem sonhos no mundo.

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