" Ser governado é... Ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado, por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude (...). Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, reenviado, corrigido. É, sob o pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; e depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, vilipendiado, vexado, acossado, maltratado, espancado, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, no máximo grau, jogado, ridicularizado, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis a justiça, eis a sua moral!

terça-feira, 26 de abril de 2011

JESUS MALVERDE










Malverde é visto por muitos como o santo padroeiro dos traficantes de drogas, dizem policiais e especialistas em cultura mexicana. Um templo foi erguido sobre seu túmulo na cidade de Culiacan, um lugarejo isolado no Estado mexicano de Sinaloa, há muito associado ao tráfico de ópio e maconha.

"Os traficantes vão ao túmulo e solicitam assistência, e depois voltam com seus carrões e pilhas de dinheiro para expressar gratidão", disse James Creechan, sociólogo canadense e professor adjunto da Universidade Autônoma de Sinaloa, em Culiacan. Mas Creechan, que apresentou um estudo sobre Malverde à Sociedade Norte-Americana de Criminologia, em 2005, acrescentou que os pobres também apelam a Malverde em suas orações, pedindo dinheiro e passagem livre pela fronteira dos Estados Unidos.

O influxo de imigrantes da região de Sinaloa, nos últimos anos, tornou a imagem de Malverde mais presente do lado norte da fronteira, especialmente no sudoeste e na Califórnia. A lenda do bandido generoso se espalhou entre os hispânicos, disse Creechan, inspirando muitos deles a construir altares para Malverde em suas casas, e a usar a colônia Malverde.

Manuel Simental, imigrante oriundo de Sinaloa, tem um altar dedicado a Malverde em seu restaurante, El Paisa, em Lynnwood, Califórnia. Segundo Simental, o altar traz boa sorte. Os clientes deixam notas e moedas no altar, que ele diz recolher e distribuir aos pobres em suas visitas ao México.

Cinco anos atrás, a Indio Products, indústria da região de Los Angeles que distribui produtos místicos, não ofereceria mercadorias referentes a Malverde. Mas hoje a linha de produtos Malverde da companhia é extensa e inclui velas, rosários, figurinhas, selos, óleos para o cabelo e detergentes sanitários. O presidente da empresa, Martin Mayer, diz que a popularidade de Malverde está crescendo. "Acabei de embarcar uma carga de bustos de Malverde para a Itália, na semana passada", disse Mayer. "Brinquei que provavelmente iriam para a Máfia".

Os produtos Malverde são usualmente vendidos nas botanicas - farmácias alternativas localizadas em bairros hispânicos que vendem ervas, ungüentos e outros produtos, incluindo amuletos e poções de magia negra. "As pessoas dizem que Malverde as ajudou a fazer isso ou aquilo; em geral são os drogados, que acreditam que ele os protege da polícia", disse Raul Gonzalez, dono e uma botanica chamada Mystic Products, em Compton, Califórnia. "É o poder da mente, sabe? Eles acreditam nisso, se arriscam e se saem bem. Mas um dia serão apanhados".

De fato as autoridades de repressão às drogas no México e nos Estados Unidos dizem que estátuas, tatuagens e amuletos de Malverde podem servir como indicação de atividade ilegal. "Nós mandamos patrulhas aos estacionamentos de hotéis e motéis locais à procura de carros com símbolos de Malverde nos pára-brisas ou pendurados no retrovisor", diz o sargento Rico Garcia, da divisão de narcóticos do departamento de polícia de Houston. "Isso nos oferece indicações de que há alguma coisa em curso".

Tribunais na Califórnia, Kansas, Nebraska e Texas decidiram que objetos alusivos a Malverde são prova admissível em casos de comércio de drogas e lavagem de dinheiro. "ão representam prova direta de culpa, mas poderiam definitivamente ser usados em combinação com outras coisas, como pilhas de dinheiro, embalagens plásticas e balanças" disse José Martinez, agente especial da Agência de Combate às Drogas (DEA) norte-americana.

No mês passado, a Cervejaria Minerva, uma pequena fabricante mexicana de cerveja no Estado de Jalisco, centro-oeste do país, lançou a cerveja Malverde. Executivos da empresa dizem ter escolhido o nome e a imagem de Malverde para o produto porque ele era uma das figuras mais reconhecidas e admiradas em grupos de discussão. "s traficantes de drogas bebem essa cerveja como se fosse água benta" disse Garcia.

Onipresente na cultura hispânica, Malverde chegou à televisão, ao cinema e ao teatro. Templos em sua honra faziam parte do cenário em um recente episódio da série CSI, da rede de TV CBS, e de A Man Apart, filme estrelado por Vin Diesel em 2003.

"O apelo de Jesus Malverde está no fato de que ele era um inconformado", disse Guillermo Aviles-Rodriguez, diretor artístico do Watts Village Theater, que produziu uma peça sobre Malverde. O fato de que a Igreja Católica não reconheça Malverde como santo também ajuda em sua imagem de rebelde. "Há algo de belo nisso", afirma Aviles-Rodriguez, "porque foi o povo que fez dele um santo. Ele representa a crença, o poder e a vontade do povo".

sexta-feira, 22 de abril de 2011

(ENTREVISTA) Marco Haurélio: um dedo de prosa sobre o cordel e o sertão

Por: Paula Ivony Laranjeira

Numa prosa quase um causo, vamos conhecendo Marco
Haurélio, um escritor do sertão baiano que na infância
brincava de ser cordelista. E o que era brincadeira,
tornou-se coisa séria. Hoje ele é referência no escrita e
estudo em literatura popular. Morando atualmente em
São Paulo não deixa de frisar que tem as raízes no
sertão: "E eu agradeço a Deus todos os dias o ter
nascido num pedaço do sertão-mundo de Guimarães
Rosa." Convido os amigos para puxar uma cadeira,
sentar e tomar parte neste causo...

PILS - Quem é Marco Haurélio?


MH: Essa eu posso responder em versos
O meu nome é Marco Haurélio,
Eu sou filho da Bahia.
Ser poeta popular
É minha grande alegria,
Pois vou tecendo universos
Em letras que parem versos,
Estrofes e poesia.

Sou poeta mais voltado para o universo da literatura
de cordel, pesquisador da cultura popular brasileira e,
neste momento, “estou” editor da Nova Alexandria,
de São Paulo, onde coordeno a coleção Clássicos em Cordel.

PILS - A partir de sua experiência, como nasce o escritor?


MH: O leitor engendra o escritor.
A minha experiência inicial foi com o
cordel. Antes de saber ler, já o ouvia
na bela voz de minha avó, Luzia Josefina,
que sabia vários textos de cor. Havia uma
gaveta de um armário, onde ela guardava os
clássicos do cordel da editora
Prelúdio/Luzeiro e de tipografias nordestinas
. Eu pegava três títulos para ler no
“olho” do umbuzeiro que tinha no quintal.
Tinha, não. Tem. O que não tem mais é a
casa. Também gostava de ouvir os contos
tradicionais e os romances ibéricos,
preservados por sua prodigiosa memória.
Aos 9 anos li, numa versão adaptada, As
Viagens de Gulliver, de Swift. Reli pelo
menos umas dez vezes. Nessa época eu
já criava algumas histórias em cordel, fixava
no papel os contos tradicionais e desenhava
uns quadrinhos toscos, depois vendidos a colegas de escola.
PILS - Você foi um garoto que aos sete
anos já escrevia história de cordel, O
soldado traidor. Na adolescência enviou
uma história para tentar publicação
na editora Luzeiro, a qual foi recusada.
Hoje o garoto nordestino que sonhava
ser cordelista se tornou um fato, e
diga-se, de sucesso. Então, persistência
e dedicação são o diferencial?


MH: Com certeza. Eu não escolhi a literatura
de cordel. Fui escolhido por ela. Mas, com o
passar do tempo, mesmo sem me afastar
totalmente, acabei dedicando meu tempo
a outras searas do fazer artístico e da pesquisa.
Isso foi importante, pois, além do cordel,
escrevo artigos e ensaios em outras áreas,
como História, Antropologia e Filosofia. Além
de ter alicerçado meus estudos sobre o
Folclore, dedicando especial atenção ao
conto popular. Persistência e dedicação são,
portanto, fundamentais.

PILS - Você é natural de Riacho de Santana,
passou a maior parte da vida entre Igaporã e
Serra do Ramalho, estudou o Ensino Superior
em Caetité, todas cidades do sertão da Bahia.
Como estas diferentes e ao mesmo tempo,
mesmas realidades contribuíram para o seu
trabalho literário?


MH: Nasci na Ponta da Serra, entre Igaporã e Riacho.
Você sabe que, na nossa região, para todo lado que
se olha, só se vê serra. A criança precisa imaginar o
que tem além das serras. Em frente à casa em que
nasci está a igreja construída por meu bisavô, o
Major Ramiro. Aos cinco anos, meus pais se
mudaram para Igaporã, onde estudei da primeira à
quinta série. Nesse período, perdi os meus bisavós
paternos e, em 1984, meus pais voltaram a morar
na Ponta da Serra. Nesse período, eu já sabia o
que queria fazer. Eu não sabia se “escritor” era
ou não profissão, mas, louco que era, decidi que,
um dia, viveria das letras. A realidade descrita
por você, nesse caso, exerceu sobre mim uma
grande influência. O ambiente, sabemos hoje, não
determina, mas condiciona E eu agradeço a Deus
todos os dias o ter nascido no num pedaço do
sertão-mundo de Guimarães Rosa.


PILS - Ao percorrer sua bibliografia se percebe
que você escreve de forma diversificada: cordel,
contos, teoria; e para diferentes faixas etárias,
mas sempre voltado para a literatura e cultura
popular. Como nasceu seu interesse por essa
vertente literária?


MH: Acho que duas pessoas têm grande “culpa”
por eu ter trilhado esta senda. De uma eu já falei.
É a minha avó, D. Luzia, a melhor professora que
já tive. A outra é o folclorista, historiador e etnógrafo
Luís da Câmara Cascudo, que, por quase cem
anos, iluminou esse planeta. A obra monumental
de Cascudo é a súmula da cultura nacional.
Jamais haverá, no Brasil ou em qualquer outro país,
pesquisador mais prolífero.

PILS – Sua ficha bibliográfica já é bem extensa.
Apresente-nos alguns dos seus livros.

A Lenda do Saci-Pererê em cordel, adotado pelo SESI Mauá
















MH:
Gosto demais de minha produção de cordel
em folhetos. O meu favorito é As Três folhas
da Serpente, baseado num conto menos conhecido
dos Irmãos Grimm, enriquecido com referências
sutis a antigos ritos funerários e da fertilidade,
estudados por Wallis Budge, James Frazer e
Vladimir Propp. No campo da literatura infantil
e juvenil, tenho vários títulos publicados e outros
tantos no prelo. Todos têm por base o cordel
ou a cultura popular. Contos Folclóricos
Brasileiros e Contos e Fábulas do Nosso
Folclore são minha principal contribuição,
por enquanto, à cultura popular brasileira.
O meu xodó agora é a antologia Meus Romances
de Cordel, publicada pela Global, que reúne
sete títulos, escritos em diferentes etapas de minha
caminhada poética.


PILS - Em Contos Folclóricos Brasileiros você
traz uma coletânea de contos populares
coletados na região. São os típicos causos
que escutamos dos avós, pais, amigos, etc.
considerados, muitas vezes, como algo de
menor valor. Mas você fez um estudo detalhado
de comparação com outras versões existentes
já classificadas no ATU, demonstrado que os
contos orais que circulam por aqui tem raízes
em outras culturas. Fale um pouco sobre esse trabalho.


MH: Boa parte dos contos reunidos neste livro foi ouvida
na infância. Outros fazem parte de um trabalho mais
recente, que inclui recolha, transcrição e estudo
das variantes e versões. São, com as naturais
modificações impostas pelo tempo ou pelo espaço,
as mesmas histórias contemporâneas da Índia dos
Vedas ou no Egito dos faraós. Alguns serviram
de fonte para autores como Shakespeare, Boccaccio
, Rabelais etc. Derivam, em alguns casos de
mitos formadores. Em outros, explicam muito
sobre os diferentes estágios civilizatórios. São,
em suma, o retrato da alma coletiva.

PILS - Ano passado, além de Contos Folclóricos
Brasileiros, você lançou o livro Breve Histórico
da Literatura de Cordel. Como é trazer um
livro de teoria sobre o cordel num país em que
ele, supostamente, é visto como algo menor?


MH: Acho que ele existe mesmo por conta disso.
Apesar de estar na base da formação cultural do
Brasil, o cordel sempre foi visto como literatura
menor, especialmente no meio acadêmico.
O poeta de cordel, de certa forma, se acomodou
e aceitou o papel que lhe era destinado. Aceitou,
inclusive, o gueto da “poesia popular”, determinado
por Patativa do Assaré no poema matuto “Cante
lá que eu canto cá”. Mas, mesmo assim, há
vozes dissonantes: autores que têm consciência
do papel identitário da arte que professam, o que
não significa submeter-se á camisa de força
linguística ou ao confinamento geográfico.

PILS - Você usa a expressão “gueto da ‘poesia
popular”, . Em Crítica sem juízo, Luiza Lobo
traz uma citação de Miriam Alves na qual se
refere à literatura de temática afro. Ela diz:
“o que nós poetas negros vivemos hoje não
é um gueto. Gueto é quando se é segregado
pelos outros. Hoje nós vivemos o quilombo; a
revolta que nós mesmos provocamos (...)”.
Assim, cogito: Patativa não estaria se referindo
a este espaço que Mirian chama de “quilombo”,
ou seja, um lugar escolhido, no qual se
busque a preservação da identidade e a própria
sobrevivência?


MH: Acredito, no caso do Patativa, tratar-se de outra coisa
. Quem o conheceu diz que ele sabia muito bem se
autopromover. O que, convenhamos, é uma qualidade
. Ele era realmente um poeta camponês. Mas era um poeta
camponês que leu Os Lusíadas e sabia de cor vários
poemas de Castro Alves. O problema é que
pesquisadores desavisados, a partir da fixação de
estereótipos, acredita que a preservação de
determinadas manifestações tradicionais – e
alguns equivocadamente incluem nesse rol o cordel –
dependem do isolamento cultural e geográfico. Como
, se Leandro Gomes de Barros, Silvino Pirauá de Lima,
Francisco das Chagas Batista, para se fazerem conhecidos,
tiveram de migrar do sertão paraibano, entre o fim do
século XIX e o começo do século XX, para o Recife?
E nem por isso deixaram de ser o que eram,
pois acrescentaram novos saberes, fazendo com que dessa
mistura – a cultura tradicional com a livresca – nascesse a literatura de cordel.


PILS - Agora você traz Meus Romances de Cordel.
O que o leitor vai encontrar neste livro?


MH: Várias faces da chamada poesia popular. Desde
o romance de encantamento, presente em História
de Belisfronte, o Filho do Pescador e na História
da Moura Torta, até o romance picaresco, base do
Decameron de Boccaccio e de obras como
o Lazzarilho de Tormes e o Mercador de Veneza,
de Shakespeare. No meu livro, o pícaro é o protagonista
de Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo.
Há, ainda, A Briga do Major Ramiro com o Diabo,
em que recrio em versos uma lenda sertaneja
envolvendo o meu bisavô, e Os Três Conselhos
Sagrados, ambientado em Bom Jesus dos Meira,
ou seja, em Brumado. Traz também o meu primeiro
romance publicável, O Herói da Montanha Negra,
escrito em 1987, que considero meu primeiro livro
publicável. Por último, o poema Galopando o
Cavalo Pensamento, composto em martelo agalopado
(décimas de dez sílabas). A apresentação é da professora
Vilma Mota Quintela, que conheci no Encontro Internacional
de Literatura de Cordel, em João Pessoa (2005).


PILS – Marco, você poderia caracterizar a Literatura de
Cordel e nos dizer como ela surgiu? Ela é reconhecida,
de fato, como literatura?


MH:Na forma como a conhecemos (com predominância
da sextilha setissílaba), ela nasceu na Paraíba, com os
poetas Leandro Gomes de Barros e Silvino Pirauá
de Lima, ainda no século XIX, consolidou-se como
atividade editorial no Recife e na região do Brejo paraibano,
e espalhou-se por outras regiões do Nordeste e Norte
do Brasil, levado na matula do migrante. Estou me
referindo ao cordel no formato consagrado pelos
autores e pela predileção popular. Mas o seu
substrato, composto por contos tradicionais,
romances ibéricos, a gesta carolíngia e, no Brasil,
a gesta do gado, tem raízes longínquas. O nosso
cordel aproxima-se, em certo ponto, da poesia
popular praticada em Portugal, Espanha, França,
Itália e na América Espanhola. Mas apresenta
uma temática mais abrangente e dialoga desde
sempre com outros gêneros literários. Ganhou,
assim, uma feição própria. Quanto ao reconhecimento,
ele existe. A literatura de cordel é respeitada por
alguns dos maiores nomes de nossas letras.
Ao mesmo tempo, enfrenta o preconceito linguístico
e social de alguns gramáticos e de pretensos
poetas “eruditos”. O pesquisador paraibano Aderaldo
Luciano, da UFRJ, foi questionado, quando postou
um artigo de sua autoria sobre a coleção Clássicos
em Cordel, no blog Poesia Hoje, por um desses
pretensos poetas “eruditos sobre a “autenticidade”
dos poetas “populares”. Ou seja, o cordelista
precisará, a partir de agora, na opinião desse
rapaz, de um atestado de “autenticidade”. Felizmente
, atitudes preconceituosas partem de uma minoria.

PILS - Nas escolas, o ensino da literatura se
pauta em obras clássicas, deixando de lado
“tudo” que não faz parte do currículo. Na
Bahia, por exemplo, não se estuda a literatura
de cordel nas escolas, pelo menos não
como deveria: como surgiu, as características,
representantes, etc.O uso desta literatura se
dá como um recurso didático ou tipologia
textual que serve, muitas vezes, para falar/explicar
alguns assuntos. Poderíamos chamá-la de
literatura marginal. Como você pensa essa questão?


MH: Eu não chamaria o cordel de literatura marginal,
mas penso que ele foi, durante muito tempo, “literatura
marginalizada”. Marginalizada, pois era avaliada de
acordo com a classe social que mais a consumia.
Hoje, com sua difusão pelo Brasil, parte desse
preconceito tem sido vencida. Para superar o
preconceito, quase sempre motivado pelo medo e
pala ignorância, a inclusão do cordel na sala de
aula é fundamental. Eu passei cinco anos na UNEB,
em Caetité, e só uma professora, Guilhermina, de
Filologia Românica, abordou o assunto. Hoje, com o
professor Rogério Soares além de outras iniciativas,
há uma abertura, mas a realidade está longe do ideal.
Aderaldo Luciano, por exemplo, advoga a inclusão do
cordel no todo literário brasileiro.
Abaixo, reproduzo trecho de um estudo de
Vilma Mota Quintela, que aclara muitos pontos
a respeito desta “marginalização” e da tentativa
de fossilização levada a cabo por alguns “estudiosos”:

“Compreender o cordel como um sistema cujas raízes se
situam em práticas populares tradicionais, ou seja, não
hegemônicas da sociedade, não implica, em absoluto,
validar a noção ainda corrente do cordel como um produto
de relações de produção cultural anacrônicas, isto é,
deslocadas do contexto cultural global. Ao contrário
disso, uma visada em perspectiva histórica permite
observar que a existência do cordel como um sistema
de produção “popular” sempre dependeu do diálogo dos seus
produtores com seus diversos outros. Assim, ainda que não se
confunda com o massivo, o cordel sempre agregou em seu discurso,
em seu suporte e em seu sistema de divulgação mecanismos
que lhe permitiram, ao longo dos anos, não apenas resistir,
como também atender às injunções do mercado. Da mesma forma,
embora se constitua com base na lógica da oralidade e, em princípio,
tenha servido, efetivamente, a esse domínio, o cordel não deixa
de refletir e mesmo de legitimar, de diversas maneiras, a preponderância
política do discurso letrado.”

PILS - A Bahia é seu lugar de origem. Mas é São Paulo que
acolhe e dá chances ao nordestino escritor, e mais precisamente,
a um escritor de uma literatura tipicamente nordestina:
o cordel. São Paulo e Rio de Janeiro ainda representam
sozinhos o espaço para quem deseja crescer dentro da
literatura? Como você vê a Bahia em termos de
possibilidades para quem deseja viver da literatura?


MH: Essa é a pergunta mais difícil. Quando saí da Bahia a
primeira vez, em 1997, pensava que, chegando a São Paulo,
veria as portas das editoras escancaradas. A realidade
mostrou-se em toda a sua crueza. Estive em muitas
editoras, inclusive na Paulus, e não consegui “emplacar
nenhuma proposta. De volta, mais maduro, em 2005,
para trabalhar numa editora, a Luzeiro, especializada em
cordéis, eu descobri que o problema não era das editoras.
Era meu. Eu não sabia o que queria de fato. Hoje, já
penso em incursões por outros campos, como o teatro
e a prosa. Mas só o farei quando tiver certeza que estou
pronto para dar esse salto. Em relação ao papel do Rio e
de São Paulo como espaços de consolidação de carreiras
artísticas, para além da literatura, penso que já foi maior.
Hoje, temos iniciativas interessantes no Rio Grande do Sul,
Minas e no Nordeste. Fortaleza é um exemplo. Na Bahia,
lamentavelmente, falta uma editora que abarque parte da
produção literária, em que pese o fato de termos alguns dos
maiores nomes das letras nacionais.


PILS - A visão acerca do Nordeste é de uma região
seca, sofrida e triste. Como você vê o nordeste?
Ele é apenas uma região carente?


MH: O Nordeste é mais do que seca, peste, fome e
coronelismo. É uma região culturalmente rica e economicamente viável.

PILS – Poderíamos pensar o Cordel como uma forma
de expressão literária e cultural capaz de dizimar a
visão de um Nordeste pobre, no que se refere à sua cultura?


MH:Com certeza. A região que deu ao país Graciliano Ramos,
João Cabral de Melo Neto, Castro Alves, Manoel Bandeira,
Leandro Gomes de Barros, Luiz Gonzaga, Mestre Vitalino,
Delarme Monteiro, Gonçalves Dias, merece respeito. Aliás,
todas as regiões do Brasil, que tingem a nossa cultura com
as cores da diversidade, merecem respeito. O cordel pode,
e deve, denunciar as mazelas sociais e políticas do Nordeste
, mas também mostrar a riqueza e a pujança da cultura nordestina.
No folheto Os Três Conselhos Sagrados, narrando
a visão de um migrante que retorna para sua terra,
após trinta anos de ausência, escrevi:


Olhou o Rio do Antônio
E ergueu ao céu uma prece,
As águas iam levando
O bem que restabelece
As forças já combalidas
De quem de Deus não esquece.


PILS - O fato de ter origem no Nordeste, e mais
precisamente nas camadas populares, explica
a não difusão e valorização do cordel na sociedade?


MH: Até certo ponto, sim. Mas tenhamos em mente
que os cordéis no Nordeste eram lidos desde a mais
humilde choupana até as casas grandes. Mas, hoje,
parte dessas barreiras foi, ou está sendo, superada.
A coleção que coordeno, pela Editora Nova Alexandria,
a Clássicos em Cordel, é adotada em várias escolas
particulares de São Paulo e de outros estados, e
seus títulos estão sempre presentes em seleções
de programas governamentais. As grandes editoras,
aos poucos, incluem o cordel em seus catálogos.
Por falta de traquejo de alguns editores, tem saído
muita coisa pavorosa, embrulhada e vendida como
cordel. Mas também tem saído muita coisa boa.


PILS - Você é um dos fundadores de A caravana do cordel.
Explique como surgiu essa ideia, e como funciona o projeto.
Ônibus-biblioteca, onde fez oficina
com o também cordelista Pedro Monteiro.
MH: O projeto surgiu das discussões que nós, cordelistas, fazíamos com o intuito de ampliar mais ainda os horizontes do cordel na Pauliceia. Os fundadores são, além de mim, João Gomes de Sá, Frei Varneci Nascimento, Costa Senna, Nando Poeta, Pedro Monteiro, Cacá Lopes. Depois vieram outros autores. A primeira apresentação aconteceu em Guarulhos, em 2008, num evento chamado Salão da Literatura de Cordel, coordenado pelo poeta João Gomes de Sá. A partir de julho de 2009, a Caravana passou a se apresentar no Espaço Cineclubista da Rua Augusta. A partir daí, com grande presença de público, seus membros se dividiram em muitas atividades, algumas delas realizadas em outros estados. Homenageamos poetas como Leandro Gomes de
Barros, Antônio Teodoro dos Santos e Chagas
Batista Se eu disser que, em alguns momentos,
não houve atritos, estaria sendo hipócrita. Houve
, sim, e isso contribuiu para o crescimento dos
membros da Caravana. Aliás, eu sempre vi a
Caravana, não apenas como um grupo de
poetas, mas como um movimento. Mais do
que isso, um conceito. Tanto que escrevi
um texto sobre o movimento reproduzido no
livro Acorda Cordel na Sala de Aula, organizado
por Arievaldo Viana. E dediquei um espaço
privilegiado no meu livro Breve História da
literatura de Cordel. Existe até um trabalho
acadêmico de Francisca Batista, enfocando
o movimento. Por isso, creio que o saldo é altamente positivo.

PILS – Além do trabalho literário, as palestras
e projetos, você ainda mantém o blog Cordel
Atemporal, que não apenas divulga seu trabalho,
mas tudo que se refere á Literatura de cordel e à
cultura popular. Tem sido um espaço frutífero?


MH: O Cordel Atemporal é um espaço abrangente que
vai além do meu trabalho. É uma ponte para outras
manifestações culturais, como o cinema o teatro e as
artes plásticas. Se eu reproduzo, num artigo sobre
a presença de São Pedro na tradição popular, um
quadro de Caravaggio, abro uma janela para o leitor
conhecer ou reencontrar esse mestre do Barroco italiano
. Apesar do tempo escasso, sempre o atualizo.
O conteúdo do blog abrange resenhas, indicações de
leituras, ensaios e informações do universo do cordel
e da cultura popular. As estatísticas apontam que o
Cordel Atemporal é lido em países como Portugal,
Estados Unidos, Turquia e Holanda. Possivelmente
por brasileiros que moram nestes países.


PILS - Pelo que você fala, e pelo que tenho lido
e observado, o cordel tem ganhado muita
força ultimamente. Sei que para isso há muita
dedicação de cordelistas e pesquisadores
em levar esta riqueza cultural aos mais variados
espaços. Teremos em breve uma novela que
de alguma forma abordará o mundo do cordel.
Você acredita que esse espaço aberto na TV
pode alavancar uma “redescoberta” do cordel?
Podemos pensar a novela como algo positivo
para uma nova safra de leitores e pesquisadores
nessa área literária?


MH: Acho positivo. O resultado, não dá para adivinhar,
mas, do ponto de vista de divulgação, será muito bom.
Não espero que a novela Cordel Encantado leve ao grande
público a riqueza temática do cordel, até porque, antes
de se propor a divulgar esse ou aquele gênero, a novela
deve narrar uma história dentro dos parâmetros estabelecidos
por uma emissora, no caso, a Globo. Não sei se a
novela em si despertará o interesse pela literatura de cordel,
como afirmei acima. Se a produção fugir do estereótipo e do falso
pitoresco, certamente será um sucesso.
Acho que a presença do cordel na trama global
será mais conceitual do que estética.

PILS - O Pesponteando e eu nos sentimos honrados em tê-lo
conosco falando sobre literatura. Obrigada! A palavra agora é sua...


MH: Deixo minha saudação
Aqui no Pesponteando,
Mesmo a prosa já findando,
Foi grande a satisfação.
Porém nada foi em vão,
Pois falamos da Bahia,
Louvamos a poesia
E outras artes brasileiras;
Viva o cordel sem fronteiras –
Adeus e até outro dia!

Paula, agradeço o espaço e a oportunidade, feliz por
fazer parte de seus retalhos literários.




Sobre o autor:

Marco Haurélio, poeta e folclorista, nasceu na localidade
Ponta da Serra, município de Riacho de Santana, sertão
da Bahia, aos 05 de julho de 1974. Desde muito cedo
entrou em contato com a literatura de cordel, escrevendo
a primeira estória com apenas seis anos de idade. Hoje,
Marco Haurélio é uma das grandes referências nacionais
da literatura popular, como poeta ou estudioso da mesma.
Ministra palestras e realiza oficinas sobre cordel e cultura popular.
Mantém o blog Cordel Atemporal(clique aqui). Atualmente
coordena a Coleção Clássicos em Cordel, da editora Nova
Alexandria. Sua bibliografia é composta pelos seguintes títulos:

Publicados pela Editora Luzeiro

• Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo
• Os Três Conselhos Sagrados
• História de Belisfronte, o Filho do Pescador
• O Herói da Montanha Negra
• A Idade do Diabo
• História da Moura Torta
• Nordeste – Terra de Bravos
• Serra do Ramalho – um Brasil que o Brasil Precisa Conhecer
• Romance do Príncipe do Reino do Limo Verde
• A Briga do Major Ramiro com o Diabo
• As Três Folhas da Serpente
• O Cordel – Seus Valores, Sua História (com João Gomes de Sá)

Publicados pela Tupynanquim

• Galopando o Cavalo Pensamento
• Traquinagens de João Grilo
• A Maldição das Sandálias do Pão-Duro Abu Kasem
• As Três Folhas da Serpente (segunda edição)

Publicado pela editora Queima-Bucha

• Cem Anos da Xilogravura na Literatura de Cordel (com Arievaldo Viana)

Publicado pela editora Olho Dágua

• Jesus Brasileiro (com Costa Senna)

Infantis e infantojuvenis

• O Príncipe que Via Defeito em Tudo (Ed. Acatu)
• A Lenda do Saci-Pererê em Cordel (Paulus)
• A Megera Domada (Ed. Nova Alexandria)
• Os Três Porquinhos em Cordel (Nova Alexandria)
• Lendas do Folclore Capixaba (Nova Alexandria)
• Traquinagens de João Grilo (segunda edição, Paulus)
• As Babuchas de Abu Kasem (Ed. Conhecimento)
• O Conde de Monte Cristo em Cordel (Nova Alexandria)
• A Roupa Nova do Rei ou O Encontro de João Grilo com Pedro Malazarte (Nova Alexandria, prelo)

Folclore e estudos da poesia popular

• Contos Folclóricos Brasileiros (Paulus)
• Contos de Fadas Brasileiros (inédito)
• Contos e Fábulas do Nosso Folclore (Nova Alexandria; prelo)
• Breve História da Literatura de Cordel (Claridade)
• Lá Detrás Daquela Serra (Cantos populares; inédito)
• Meus Romances de Cordel (antologia, Global Editora)

* Retirado do Blog
http://pesponteando.blogspot.com/