" Ser governado é... Ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado, por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude (...). Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, reenviado, corrigido. É, sob o pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; e depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, vilipendiado, vexado, acossado, maltratado, espancado, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, no máximo grau, jogado, ridicularizado, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis a justiça, eis a sua moral!

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O caso do cordel “Confusão no Cemitério”











Marca indelével da cultura nordestina, a literatura de cordel traduz reações diversas, ao nível ficcional, de críticas a situações injustas e desejos internalizados em efetivar mudanças sociais praticamente impossíveis de se concretizarem no plano real.



O preconceito com relação à literatura de cordel impediu que um brilhante cordelista paraibano, radicado no Rio de Janeiro, conhecido por Raimundo Santa Helena, pudesse concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Essa manifestação, com certeza, está ligada às condições materiais e sócio-econômicas da produção desse gênero literário, do qual possui vínculos, primordialmente, com as camadas menos favorecidas, sobretudo no Nordeste brasileiro, riquíssimo celeiro de cordelistas e repentistas, a exemplo de Leandro Gomes de Barros, considerado de fato o verdadeiro “príncipe dos poetas brasileiros”, na expressão simpática de Carlos Drummond de Andrade.


A arrogância do refinamento “erudito” impede que a literatura de cordel seja valorizada na forma exata como merece ser, principalmente devido a “má qualidade da impressão", o pouco caso com a “correção” lingüística, a presença marcante da oralidade, o fato de ser tradicionalmente vendida em feiras e o tipo de consumidor, em geral pessoas de baixo nível escolar.


No ensejo da resistência cultural empreendida pelos grandes menestréis das feiras e esquinas da maioria das cidades regionais, encontramos o homem e a luta pela afirmação da literatura de cordel personificados em José Ribamar Alves, um dos nobres guerreiros da cultura popular aquartelado em Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte.


José Ribamar Alves nasceu em 16 de março de 1962, no sítio Solidão, município de Caraúbas, Estado do Rio Grande do Norte, embora registrado em Severiano Melo, Estado do Rio Grande do Norte, onde foi criado. É filho de José Alves Sobrinho e Rosa Maria de Carvalho. Casado com Rita de Oliveira Carvalho, reside em Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte. Tornou-se repentista profissional a partir de 1983, sendo autor de diversos títulos de cordel, a exemplo de “Armadilhas do Destino”, “Pela Vida do Planeta”, “A Quebra de Silêncio”, “A Crueldade de Osama e A Vingança de Bush” e “Confusão no Cemitério”.


No cordel “Confusão no Cemitério” (Coleção Queima-bucha de Cordel – nº 10 – Março de 2002 – Mossoró - RN), cuja inovação na arte de capa, em xilogravura, se deve ao não menos renomado poeta popular Antônio Francisco, efetivada pelo artista plástico e poeta Laércio Eugênio, José Ribamar Alves expressa os pormenores do seu IMAGINÁRIO fantástico ao contestar a ordem estabelecida através de confusões na vida após a morte.


Um cemitério do Rio de Janeiro, cidade onde os contrastes são mais acentuados, imperando a violência urbana e a corrupção, as quais andam de mãos dadas em consonância com o recrudescimento das diferenças interclasses, serve de cenário para a narrativa.


As confusões de um coveiro atrapalhado, conhecido por “biriteiro”, são narradas na terceira pessoa do singular, as quais tiveram como veículo as confissões de um personagem que o autor deu o nome de Fernando de Risadinha.


Invocando contatos com o além, José Ribamar Alves traça o perfil da sociedade através da continuidade das relações de poder observadas no mundo dos vivos. O coveiro recebe visita de pessoa morta que vem lhe reclamar do serviço errado que o deixou com as costas viradas no túmulo, de cujo gesto de vingança consistiu em trocar as cruzes do cemitério, invertendo as identificações dos mortos das quais pertenciam.


A cruz de um marginal vai parar no túmulo de um Juiz Federal, enquanto um vigário e um pastor, após as inversões, acabam brigando, suscitando que faleceram desconhecendo o significado da palavra “amor”. Cartola desesperado com a confusão da troca de cruzes demonstra que tem poder, mesmo após a morte, convocando a repressão do aparelho do Estado, da mesma forma quando vivo, fazendo o maior escarcéu na necrópole, invocando ainda os poderes de um pai de santo, também falecido.


Como no mundo dos vivos, apenas pobres e excluídos sofrem com a algazarra das almas penadas, enquanto chefão de drogas, banqueiro de jogo, advogado e político não são molestados.


O desejo de revanche fica explícito quando a alma de um “cabra desassombrado” “Meteu um braço de cruz/ Na nuca dum delegado/ Que ele caiu por cima/ Da caveira dum soldado” (Confusão no Cemitério, estrofe XXII). Isso serviu para “despertar” os marginalizados da letargia em que se encontravam, atentando contra a ordem estabelecida e afirmando, dessa forma, a contestação ao status quo. Rebelam-se mundana, travesti e jogador, além de cego, maneta, perneta, mudo, gari, escritor, jornalista, motorista, prefeito e vereador. Na verdade, desencadeia-se uma revolta em todas as classes, condicionada pela hegemonia que desfrutam àqueles que detém o poder, levando o autor a indagar sobre a repetição, entre os mortos, das mesmas situações de desigualdades terrenas, quando o cordelista destaca que “Também sei que entre as classes/ Há muita desigualdade/ De tudo elas são capazes/ Mas pra falar a verdade/ Eu não sabia que os mortos/ São da mesma qualidade” (Confusão no Cemitério, estrofe XXIX).


A exclusão social, infelizmente, ainda é uma mácula na sociedade brasileira e o cordel, enquanto instrumento de afirmação das classes populares, cumpre o papel de bradar contra as injustiças e em favor das aspirações do povo brasileiro.


Em “Confusão no Cemitério” José Ribamar Alves sintetiza a cosmovisão popular e o seu imaginário quanto ao desejo de buscar a superação das distorções sociais que separam ricos e pobres num fosso indevassável da realidade criada pelas elites que se arvoraram em donas do poder desde nossa formação sócio-econômica.



(*) José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo. professor da UERN.

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