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A emergência do racismo e a cristalização do conceito de raças coincidiram historicamente com dois fenômenos da era moderna: o início do tráfico de escravos da África para as Américas e o esvanecimento do tradicional espírito religioso em favor de interpretações científicas da natureza.
Diversidade humana
Antes de prosseguirmos, proponho ao leitor um simples experimento. Dirija-se a um local onde haja grande número de pessoas – uma sala de aula, um restaurante, o saguão de um edifício comercial ou mesmo a calçada de uma rua movimentada. Agora observe cuidadosamente as pessoas ao redor.
Deverá logo saltar aos olhos que somos todos muito parecidos e, ao mesmo tempo, muito diferentes. Realmente, podemos ver grandes similaridades no plano corporal, na postura ereta, na pele fina e na falta relativa de pêlos, características daespécie humana que nos distinguem dos outros primatas.
Por outro lado, serão evidentes as extraordinárias variações morfológicas entre as diferentes pessoas: sexo, idade, altura, peso, massa muscular e distribuição degordura corporal, comprimento, cor e textura dos cabelos (ou ausência deles), cor eformato dos olhos, formatos do nariz e lábios, cor da pele etc. Estas variações são quantitativas, contínuas, graduais. A priori, não existe absolutamente nenhuma razão para valorizar mais uma ou outra dessas características no exercício deperscrutação.
Mas logo se descobre que nem todos os traços têm a mesma relevância. Alguns são mais importantes, por exemplo, quando reparamos que algumas pessoas, geralmente do sexo oposto, são mais atraentes que outras. Além disso, há características que podem nos fornecer informações sobre a origem geográfica ancestral das pessoas: uma pele negra pode nos levar a inferir que a pessoa tem ancestrais africanos, olhos puxados evocam ancestralidade oriental etc. Mas isso é tudo: não há absolutamente mais nada que possamos captar à flor da pele.
Pense bem. Como é possível que ter ancestrais na África faça o todo de uma pessoa diferente de quem tem ancestrais na Ásia ou Europa? O que têm a pigmentação da pele, o formato e a cor dos olhos ou a textura do cabelo a ver comas qualidades humanas singulares que determinam uma individualidadeexistencial?
Taxonomia da humanidade
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• Homo sapiens europaeus : Branco, sério, forte
• Homo sapiens asiaticus : Amarelo, melancólico, avaro
• Homo sapiens afer : Negro, impassível, preguiçoso
• Homo sapiens americanus : Vermelho, mal-humorado, violento
Observe o leitor que as raças de Linnaeus continham traços peculiares fixos, ou seja, havia a expectativa de todos os europeus serem “brancos, sérios e fortes”. Assim, teríamos de esperar que as pessoas negras ao redor de nós tivessem tendências “impassíveis e preguiçosas” e que as de olhos puxados fossem predispostas à “melancolia e avarice”.
Este é um exemplo do absurdo da perspectiva essencialista ou tipológica de raças humanas. A raça é vista como um elemento inerente e fundamental que especifica holisticamente a pessoa. Nesse paradigma, o indivíduo não pode simplesmenteter a pele mais ou menos pigmentada, ou o cabelo mais ou menos crespo – eletem de ser definido como “negro” ou “branco”, rótulo determinante de sua identidade. A pigmentação da pele e outras características superficiais, em vez deserem corretamente percebidas como pouco relevantes, sinalizariam, então, profundas diferenças entre as pessoas.
Esse tipo de associação fixa de características físicas e psicológicas, queincrivelmente ainda persiste na atualidade, não faz absolutamente nenhum sentido do ponto de vista genético e biológico! O genoma humano tem cerca de 20 mil genes e sabemos que poucas dúzias deles controlam a pigmentação da pele e a aparência física dos humanos. Está 100% estabelecido que esses genes não têm nenhuma influência sobre qualquer traço comportamental ou intelectual.
Seria adequado aceitar que a divisão taxonômica da espécie humana proposta por Linnaeus estabeleceu os alicerces das teorias racistas, ou existem outros modelos históricos possíveis?
O que veio primeiro: as raças ou o racismo?
O filósofo francês Voltaire (1694-1778, ver imagem), contemporâneo de Linnaeus, afirmou em suas Cartas filosóficas publicadas em 1733:
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Repare o leitor em um detalhe de suma importância: o texto de Voltaire, escrito em 1733 e já de cunho gritantemente racista, apareceu 34 anos antes da divisão da humanidade feita por Linnaeus! Em outras palavras: o racismo não decorreu da invenção das raças; ele a precedeu! Linnaeus e seus seguidores não inventaram o racismo, mas infelizmente o reforçaram e legitimaram, fornecendo um modelo “científico” para sua reificação. Por que e como aconteceu isto?
Uma investigação etiológica do racismo nos leva, como freqüentemente acontece, ao vil metal. O tráfico de escravos da África para as colônias americanas foi uma atividade de enorme lucratividade para as nações envolvidas (Inglaterra, Portugal,Espanha e Holanda, entre outras) e teve expressivo impacto econômico. Não é nenhum exagero afirmar que o tráfico de escravos financiou a revolução industrial na Europa.
Por outro lado, a motivação econômica para o abominável tráfico de escravosentrava em conflito com a fé cristã. Afinal, a doutrina da unidade da humanidadebaseada no relato bíblico de Adão e Eva era um poderoso obstáculo ao desenvolvimento de ideologias racistas. A “solução” encontrada para conciliar a consciência cristã com as desumanidades a que os senhores submetiam seusescravos foi a invenção de uma ideologia que relegava os africanos a um status biologicamente inferior, assim negando-lhes a plena humanidade.
Muito apropriada, neste contexto, foi a maneira sutil como o filósofo francês Montesquieu (1689-1755) satirizou os argumentos dos escravocratas, escrevendo no seu Espírito das leis de 1748: “É impossível supormos que essas criaturas sejam humanas, porque, se aceitarmos que eles são humanos, haveria então a suspeita de que nós não somos Cristãos”.
Mas a conciliação do inconciliável precisava ser racionalizada com argumentos da própria religião. Isso envolveu duas vertentes principais. A primeira consistiu em substituir a ênfase da unidade da humanidade a partir da Adão e Eva por uma divisão tricotômica baseada nos filhos de Noé: Cam, Sem e Jafé.
Segundo o livro do Gênese na Bíblia, Cam viu Noé nu e bêbado e contou para seus irmãos, zombando do pai. Ao saber disso, Noé amaldiçoou Cam e o condenou, assim como toda a sua descendência, à servidão. Os escravocratas avidamenteadotaram uma identificação dos africanos com os descendentes de Cam, uma cômoda justificativa religiosa para a escravidão, embora na própria Bíblia não haja nenhuma referência à cor de Cam ou qualquer descrição de seus descendentes.
O segundo estratagema religioso inventado pelos escravocratas foi ressaltar o fato de os africanos serem ateus, assim justificando a sua escravização. Mas isso gerou outro problema – como tratar o escravo após sua conversão ao cristianismo? A saída encontrada foi postular que os escravos convertidos podiam ser mantidosem servidão porque, embora cristãos, eram descendentes de ateus.
Observe-se que essa racionalização provocou uma infausta mudança deparadigma: os africanos passaram a ser considerados inferiores de maneira irreversível e hereditária. A partir daí, a transmissibilidade genética da inferioridadebiológica tornou-se parte integral das doutrinas racistas.
Cientistas a serviço dos escravocratas
e 19, a influência da teoria cristã da unidade da espécie humanaevanesceu, permitindo a afloração do “racismo científico”, que tratava as raças humanas como se fossem espécies diferentes, biologicamente incompatíveis (!). A noção de raça essencializou-se como definição do “todo” do indivíduo e não apenas de características superficiais.
Mais nefastamente, alguns naturalistas não se contentaram em tentar demonstrar que as raças eram biologicamente diferentes, mas empreenderam cruzadas para provar que os africanos e seus descendentes eram biologicamente inferiores. Aqui, novamente, interesses econômicos influenciaram as doutrinas científicas. Na tentativa de preservar o status quo e impedir o avanço inexorável dos movimentos abolicionistas, os escravocratas nas Américas tentaram justificar a escravidão comargumentos “científicos”.
Desde então, o conceito das diferenças biológicas das “raças” se infiltrou paulatinamente em nossa cultura, assumindo quase uma qualidade de elemento fundamental e indispensável da mesma. Estava criado o solo fértil ondegerminariam as calamitosas ideologias do nazismo e do apartheid.
O genial poeta Chico Buarque de Holanda sugere na canção “Apesar de você”: “Você que inventou a tristeza, / Ora, tenha a fineza / De desinventar...”. Parafraseando-o, podemos dizer que, se a cultura ocidental inventou o racismo eas raças, temos, agora, o dever de desinventá-los!
Não será tarefa fácil; alguns diriam mesmo impossível, pois as categorias raciaisestão entranhadas nas nossas instituições sociais. Para levá-la a cabo, devemos nos alinhar com uma proposta do grande político americano Robert Kennedy (1925-1968): “Há aqueles que vêem as coisas como elas são e perguntam por quê. Eu sonho com coisas que nunca foram e pergunto: por que não?”
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
11/07/2008
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